Eu caminhava com raiva pelas ruas da cidade, como se cada passo significasse um ato de violência, um grito, uma febre contra todos os que por mim, indiscriminadamente, passavam. Encarar a vida prática e se estabelecer na rotina— não importa quando, não importa aonde — é sempre uma dor impensável. Não que ter hábitos seja difícil. A gente se acostuma com isso. Mas o costume não é sinônimo de satisfação; e talvez antes o contrário, já que nos habituamos também à maldade, ao martírio, à religiosidade. É tudo uma questão de exposição; exposição ao horrendo, ao sacrifício.
Nós, seres humanos, somos nômades; sempre fomos. É isso que nos define, nos honra e apetece. Somos caminhantes dotados de apetites brutais, de amor pela terra, desejo de céu. Apaziguar esse ímpeto é justificar essa condição desigual e inexata, essa definição fraca e humilhante, esse jeito idiota de denominar o que somos: sociedade. O que sobrou de nós é só um sopro do que já fomos; e todo mundo, em algum momento, já intuiu isso.
E assim, vivendo a raiva que consome o meu dia, eu sempre retomo os afazeres, as obrigações que me esmagam. Fazendo o que preciso e quando preciso, eu posso parecer, aos olhos do observador comum, alguém que sente e experimenta a vida social como todo mundo. E deve parecer que é isso mesmo, ao ponto de fazer com que, eventualmente, os outros me olhem como um modelo e um consolo, um respiro de fé na ideia de que uma vida em comunidade é um acerto. Mas não é esse o sentimento que ocupa a minha mente; e só eu entendo isso, porque é em mim que mora o medo e o horror de me ver contrariando os meus próprios desejos, o meu egoísmo. Quero cuidar de mim e dos meus. Quero sair com a minha família e não me importar mais com nada e com ninguém. Mas quem tem o direito de ser o que é?
Um bicho, não, um monstro escapa dos meus olhos, varrendo os dias a procurar mais um motivo para que eu ainda possa insistir. E todos os dias esse pesadelo retorna com mais um motivo, e mais um, e mais um; porque é só assim que se pode ter fé na vida. Só assim se pode ter fé.
Colagem de Julia Geiser