Hoje precisei sair de casa sem óculos. Tinha que trocar as lentes e como meus óculos precisavam ficar na ótica, saí para trabalhar sem conseguir ver direito o que me aparecia pela frente.
Logo quando eu comecei a usar óculos (eu tinha 12 anos) a sensação de desconforto sempre vencia a minha necessidade de enxergar melhor. Andava sempre com os óculos, mas só colocava no rosto se sentisse que era necessário mesmo. Mas o tempo passou, o grau aumentou e hoje estar com os óculos é algo tão natural para mim quanto me vestir.
E é por isso que hoje pude perceber como ver através das lentes é um milagre silencioso, do tipo difícil de notar, mas que acontece de forma constante e cotidiana. Com os óculos eu posso ver o mundo do jeito que ele deve parecer (será que é isso mesmo?). Por outro lado, é estranho entender e aceitar que o seu corpo não consegue interpretar corretamente o mundo físico e suas possibilidades. Ver embaçado (e depender dos óculos para não ver assim) é se compreender limitado não pelos outros, pelo mundo ou pelo destino, mas por você mesmo, pelo que você é, pelo que você pode ser.
Ainda assim, me veio em um momento aleatório do dia um pensamento curioso, de como é bom poder tirar os óculos e me perceber vivo, real, com meus defeitos, limitações e circunstâncias. Eu sou alguém. Alguém incerto, incompleto e com 3º de miopia, uma pessoa com dificuldades que são só minhas, capacidades que são só minhas.
Me reconheço como parte da humanidade mais pelo que me falta do que por qualquer outra coisa que talvez eu tenha de comum. E não é bonito isso? Se saber parte e não inteiro, se perceber algo do caminho.
“Chuva, vapor e velocidade” — pintura de William Turner