Trabalho, antes de tudo
O trabalho é, na maneira como o concebeu Marx, algo que nos define enquanto seres humanos. O sentido ontológico do trabalho está no fato de que, para viver, precisamos criar, produzir, gerar algo para além do que a própria natureza oferece. Assim, o que caracteriza a essência humana é a dimensão do trabalho, porque não poderíamos viver de outra forma. Se o trabalho, hoje vinculado ao capitalismo, gera um deslocamento do sentido da vida, esse é outro problema. Richard Sennett, por exemplo, discute isso em O artífice, lembrando que a ação que envolve os trabalhos manuais implica necessariamente em um tipo de engajamento com aquilo que é humano. Assim, mesmo sendo verdade que o trabalho, especialmente o manual, foi desvalorizado em diversos momentos da história, ele não deixa de “espelhar essas questões mais amplas do passado e do presente” (O artífice, p.29). É pelo trabalho que nos reconhecemos como parte da sociedade e é através dele que nos percebemos nas ações dos outros.
Esses dias li um livro chamado A pediatra (de Andréa Del Fuego). Apesar de não mencionar diretamente a questão do trabalho como um tema central, esse foi o aspecto que mais me chamou atenção na personagem central. Cecília é uma mulher respeitada profissionalmente, mas que detesta a pediatria, as crianças e a maioria dos outros seres humanos. O livro guarda um humor sombrio e ao mesmo tempo surreal, que faz tudo parecer meio impossível (apesar da ausência absoluta de artifícios de fantasia) em meio a uma narrativa que investe quase que exclusivamente em situações do cotidiano.
Mas Cecília não odeia o trabalho por ele mesmo. Ela se tornou médica porque o pai também era. Por isso foi conveniente e, de certa forma, natural, que ela seguisse o mesmo caminho, a mesma especialidade e tivesse um consultório próximo ao do pai. No entanto, fazer o que deveria ser feito está longe de ser o mesmo que fazer as coisas com paixão. E nesse aspecto acho que o livro acerta em cheio ao apontar para a situação da maior parte dos trabalhadores: apesar do discurso de autoajuda que insiste na tese de que o bom trabalhador é aquele que ama o que faz, quase ninguém vive fazendo aquilo que ama. Cecília aponta para essa parte de sua vida com uma ponderação muito simples:
Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz (A pediatra, p.17)
Quando conhecemos um profissional que faz minimamente bem o que deve fazer, esquecemos, ou melhor, nem consideramos a possibilidade de que ele não faça aquilo por prazer, determinação e paixão. Pensamos de imediato que o trabalho ali visível nas ações certeiras é um sinal definitivo de alguém que nasceu para fazer aquilo. Contudo, ainda que concorde com Marx em relação à natureza essencial do trabalho como algo que nos define e nos organiza no mundo, não acredito que possamos dizer que o trabalho em seu cotidiano espelha com fidelidade aquilo que somos, especialmente hoje. Em um mundo em que temos tanto — e em que a atividade do trabalho, muitas vezes desconectada de nossos interesses práticos, nos tira tanto tempo — é bem mais natural aceitar que o labor é um tipo de estorvo constante com o qual temos que conviver. Fazer bem o que fazemos, com respeito, dignidade e dedicação, é parte do esforço coletivo para que a vida social seja menos penosa do que normalmente já é. Mas a pediatra que detesta crianças é menos estranha do que parece no livro1. Trabalhamos, antes de tudo, apesar de tudo; mas não é o amor que nos move aqui. É que não temos outra saída.
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Na verdade, se ela é esquisita é muito mais por outros motivos, que mobilizam a personagem e movem a história que, apesar de tudo, não se encerra (como eu já disse) em uma reflexão sobre o trabalho. ↩
Marcos Ramon
Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | ArquivoRelacionados
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