Marx e as diferentes faces da dialética
A reflexão sobre a palavra dialética passa hoje, necessariamente, pela presença da filosofia de Marx. Mas o próprio Marx incorporou o uso da dialética a partir de uma reflexão que foi feita no decorrer da história da filosofia. De Heráclito a Hegel, a dialética foi ganhando os contornos do que pensamos hoje para o conceito, mas certamente é em Hegel que Marx se inspirou de maneira mais direta para pensar a possibilidade de encarar a realidade por meio do conflito entre posicionamentos opostos.
Primeiro, é preciso dizer que dialética tem relação com a palavra diálogo, que guarda em sua etimologia a ideia de algo que passa através da palavra, através da razão; ou, por meio da razão. O diálogo, então (e a dialética também), não depende necessariamente da relação com o outro. Platão, por exemplo, acreditava na dialética como um método para alcançar a verdade. É pelo embate dialético, pelo confronto de ideias, que ele acreditava que a verdade iria se sobressair. E isso pode ser feito no diálogo de uma pessoa com outra, assim como pode ser feito no diálogo interno, de cada um consigo mesmo. Por outro lado, Aristóteles utilizava o termo dialética como parte do argumento contencioso, ou a arte de convencer por meio do argumento, algo que Schopenhauer incorporou em um de seus escritos não publicados (mas ainda assim, mais famosos).
Mas talvez a percepção mais conhecida da dialética é a de confronto entre opostos, algo presente na filosofia de Heráclito. Esse filósofo é famoso por suas proposições mais poéticas1. Mas nos trechos dele que sobreviveram existem inúmeros exemplos dessa compreensão da dialética como busca por uma síntese entre opostos. Heráclito escreveu, por exemplo, que “a guerra é mãe e rainha de todas as coisas” e que “nada é permanente, exceto a mudança”. Daí o filósofo afirmar que a doença é tão importante quanto a saúde, ou que o confronto não deve ser encarado com um problema, no sentido de algo que devemos evitar. É pelo conflito, pelo embate, que a realidade é o que é. É pelo confronto interno e com os outros que somos o que somos. E essa perspectiva apresentada por Heráclito é justamente aquela que foi incorporada por Hegel e, depois, por Marx.
Se em Marx a dialética se conecta diretamente com a noção de trabalho e com a dimensão produtiva (principalmente no contexto das relações de poder), em Hegel a dialética entra no campo da abstração. Aliás, o ponto em que Marx discorda e se afasta de Hegel é justamente no idealismo, na compreensão de uma filosofia que é abstrata, ou que continua abstrata, quando a realidade demandava mais do que nunca a transformação.
Hegel utilizou alguns exemplos distintos para tentar explicar a noção de dialética que ele defende, mas o menos lembrado é justamente aquele que acho o melhor: o amor. A dialética hegeliana parte da estrutura mais conhecida desse tipo de raciocínio. Ou seja, existe uma tese que encontra uma antítese, e desse conflito entre os dois elementos surge uma síntese. No entanto, essa síntese se transforma eventualmente em uma nova tese, que encontra outra antítese, e o confronto entre esses novos elementos nos apresenta uma nova síntese, e assim sucessivamente.
Na relação amorosa o eu é a tese, e a pessoa por quem eu me apaixono é a antítese. E desse confronto (e é importante relembrar que ele não tem um peso intrinsecamente negativo) surge uma síntese, que é a própria relação amorosa. Como afirma Hegel “no amor, um indivíduo tem a consciência de si na consciência do outro, alienou-se e, nesta alienação recíproca, tanto conquistou o outro como se ganhou a si mesmo enquanto um só com o outro”2. Se alienar no outro, se perder no outro, diz Hegel, é na verdade se encontrar. Mas se a relação com a antítese é negativa, esse conflito se transforma em ciúme, posse, em um sentimento destrutivo. Mas o movimento dialético, natural, é essencialmente um movimento de liberdade. Cada um em sua instância, respeitando a particularidade do outro, entende a sua situação, e a síntese é o movimento natural, o próprio amor.
A relação amorosa não se encontra pertencimento cego, no sentido do outro que pertence a mim. O amor se resolve no conflito que permite que cada parte (a tese e a antítese) existam autonomamente. Não existe amor na alienação absoluta de apenas uma das partes. A alienação recíproca é que permite o encontro. Se eu me alieno, se eu deixo de existir como eu mesmo para ser da outra pessoa (ou o contrário), o movimento não segue o fluxo natural, não se transforma em síntese. Amar não é se anular no outro, mas se compreender e compreender o outro em sua circunstância. A dialética, portanto, não é apenas uma representação do confronto que se resolve no sentido do que deve ser combatido, mas sim uma tentativa de compreensão de nós mesmos.
E aqui, nesse exemplo, acho que a compreensão de Marx se junta com a de Hegel, ainda que por um caminho bem distinto. No Capital Marx escreveu que “em Hegel, a dialética está na cabeça. É preciso virá-la de pernas para o ar, para descobrir o cerne racional no envoltório místico”. Mas o que a dialética de Hegel tem em comum com a de Marx é a crença, quase inabalável, no curso do progresso, na ideia de que a história segue o seu caminho e atropela tudo e todos para se fazer realidade. Por isso o real é o racional, como escreveu Hegel. Conhecemos a realidade por meio de nossa presença no mundo, e a nossa forma de ver o mundo é uma forma dialética. Isso não quer dizer que a dialética é a linguagem do universo, mas sim que a nossa capacidade racional nos permite entender a realidade a partir da relação entre os opostos. E isso vale tanto para o amor quanto para as relações de trabalho.