O desapego

Ontem separei alguns livros para doar, livros que estavam sem uso, estragando em uma estante perto da cozinha.

Podia ser uma coisa simples, mas a verdade é que essa é uma tarefa difícil pra mim (doar qualquer coisa), porque sou apegado aos objetos e crente na ideia de que um dia aquilo que estou doando pode me servir - ainda mais sendo um livro.

Mas a verdade é que eu nunca vou ler todos os livros que eu tenho - mesmo não tendo muitos - e mantê-los em uma estante entulhada só pelo prazer de possuí-los é tirar de alguém a possibilidade da leitura e condenar os livros ao mofo (como aconteceu com um exemplar de Ana Karenina que verifiquei já ser impossível de ler).

O trabalho era simples. Escolher o que tinha que ficar e o que devia ir. O destino já estava certo, a biblioteca de Águas Claras, pertinho da minha casa. Como não tinha mais como adiar a tarefa, tentei elaborar um critério.

Pra ser doado o livro tinha ser considerado não lível pra gente (eu, minha esposa, meu filho), o que podia significar um livro já gasto demais (páginas muito amareladas, texto meio apagado etc.) ou que a gente não iria mais ler mesmo. Comecei.

Primeira pilha: o que fica. Jorge Luis Borges. Montaigne. Goethe. Descartes. André Breton. Violette Leduc. James Baldwin. Schopenhauer.

Segunda pilha: o que vai. Aldous Huxley. Foucault. Nietzsche. Kafka. Dostoiévski. Saramago. Chordelos de Laclos. Jonhatan Swift.

Tiveram outros, mas esses são alguns que lembro que doeram mais pra decidir. Mandei embora coisas que eu gostava - mas que não preciso ou que quero uma cópia melhor - e fiquei só aquilo que não consegui mesmo me desfazer.

Hoje, quando estava saindo pra ir à biblioteca levar as sacolas (eram uns sessenta livros), eu olhei bem em cima daquele amontoado o livro Viagens de Gulliver. Sempre pensei que esse era um livro que eu tinha que ler e sempre deixei pra depois. No caso dessa edição específica o tamanho da fonte (ridiculamente pequena), ainda aumentava a preguiça e fiquei lutando pra ver se mandava ele embora ou não. Fiz o mesmo embate com outros livros. Acabei não tirando nenhum do saco de doações.

Voltando pra casa pesquisei no site da Amazon se existia alguma tradução das Viagens de Gulliver pro Kindle e que surpresa foi descobrir que não só tinha, mas era gratuita! Baixei o livro, e quando saí de casa vim lendo no metrô. E que leitura boa. E só aí foi que eu percebi que sim, eu devia ter dado esse livro. Se não tivesse separado ele pra doação eu sempre ia imaginar que ia ler a cópia que eu tinha e nunca ia sair do lugar. Jonhatan Swift seria pra sempre um dos meus autores do futuro, preso em uma estante no fundo da cozinha.

O desapego tem seus mistérios. E um deles, parece, é conspirar pra gente fazer o que é melhor pra gente e pros outros.

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo

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