A ideia de falar sobre Judith Butler e a sua reflexão filosófica sobre gênero, veio depois de eu observar as manifestações contra a vinda dela ao Brasil para participar do evento “Os fins da democracia”, que ocorreu no Sesc Pompeia, em São Paulo, nessa semana que passou, entre os dia 7 e 9 de Novembro. O evento foi organizado pelo Convênio Internacional de Programas de Teoria Crítica (UC Berkeley) e Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Como indicava o nome do evento, não se tratava diretamente de fomentar um debate sobre gênero, mas mesmo assim ocorreu uma movimentação barulhenta que pedia (se não exigia) que a filósofa não viesse ao Brasil. Os motivos para isso seriam as reflexões da autora como defensora de princípios que “ferem” o posicionamento conservador em relação à questão de gênero.
Isso parece algo um tanto grotesco, mas reflete bem o clima atual em que vivemos hoje, quando grupos organizados (de todos os tipos e posicionamentos ideológicos, diga-se de passagem) se sentem no direito de determinar o que deve ser feito e o que deve ser dito e para quem. De qualquer forma, o que me interessa aqui é a reflexão filosófica trazida por Judith Butler, algo que talvez boa parte das pessoas ainda não conheçam, mesmo que estejam rechaçando suas ideias e reflexões.
Foto de Bruno Santos/Folhapress
O tema central da polêmica recente é um livro de Butler chamado “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”. Esse livro, publicado nos anos 1990, discute a questão do feminismo e propõe uma reflexão filosófica sobre categorias como sexo, gênero e desejo. O elemento chave é contestar o caminho corrente do feminismo e buscar uma reinterpretação do gênero a partir do conceito de performatividade, fugindo um pouco da distinção padrão e binária de sexo e gênero como alocações dentro da lógica do feminino como identidade fixa oposta ao masculino.
Aqui me proponho a trazer um pouco desta reflexão para ajudar as pessoas a entenderem a proposta de Butler, que no final de tudo é política e não meramente cultural ou comportamental, como parece ser a quem teve acesso as ideias dela por meio dos panfletos de ódio disseminados recentemente.
Depois de questionar no início do livro a noção de problema — que tem, pela presença já no título do livro, uma importância determinante — Butler propõe uma reflexão sobre os direcionamentos do movimento feminista até então (e aqui é importante lembrar mais uma vez que o livro foi publicado nos anos 1990). A crítica de Judith Butler ao movimento feminista decorre da constatação do que ela dizia ser uma associação do feminismo como uma categoria de “mulheres” como sendo o sujeito do feminismo. Parece óbvio que as mulheres sejam o sujeito do feminismo, mas o questionamento dela faz sentido quando nos propomos a pensar sobre o posicionamento político que compreende o termo “mulher” como uma identidade comum. Na visão de Butler o problema de encarar o feminismo como uma instância universal de lutas comuns, é considerar que a ideia de identidade das mulheres é a mesma nas diferentes culturas e estruturas políticas. Não é. Além disso, a noção binária de masculino/feminino descaracteriza outros fatores relevantes como classe, raça, etnia e quaisquer outros eixos de poder que constituem nossa identidade, que, aliás, não é singular, mas sempre plural. Então, identidades.
Mas porque questionar a noção das mulheres como sujeito do feminismo? Para Butler isso é importante justamente para rompermos com a noção binária e ontologicamente construída de masculino/feminino, o que, na interpretação dela, só reforça a ideia de normatividade masculina, ao qual a perspectiva feminina é sempre uma oposição. Romper com a lógica binária, portanto, é o caminho para escapar dessa relação de domínio normativo. Outro ponto importante que decorre da fuga do binário é questionar o que ela chama de ordem compulsória do sexo, do gênero e do desejo. Do ponto vista comumente aceito, se define o sexo como um aspecto biológico/fisiológico e o gênero como uma construção cultural/social. Já o desejo aparece sempre em uma instância relacionada a esses elementos biológicos e culturais, mas no fim estamos ainda, e sempre, falando em dualidades. O que Judith Butler questiona é justamente o seguinte: “homens” se aplicam apenas a corpos masculinos? E o termo “mulheres”, se refere apenas a corpos femininos? A partir desse questionamento, ela afirma que não existe nenhum motivo razoável para que os gêneros devam permanecer apenas em número de dois. O principal motivo pelo qual insistimos nisso, é porque vivemos em uma sociedade “heteronormativa”. O fator determinante, portanto, é jurídico. Trata-se, como dizia Foucault, de controle dos corpos e desejos dos outros para fins políticos, econômicos e sociais. E assim fica mais claro entender o posicionamento de quem se coloca contra a sexualidade dos outros: não se trata de uma defesa de princípios morais (o que já seria estranho, mas essa discussão fica pra outro momento), mas sim de uma luta por uma identidade comum (ilusória, claro) que nos permite viver de forma simples, eficaz e pragmática.
Butler retoma, a partir disso, a clássica afirmação de Simone de Beauvoir, quando esta diz, na obra “O segundo sexo”, que “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”. O tornar-se mulher, nesse caso, é uma decorrência de uma compulsão cultural que nem sempre considera que o corpo é uma situação. Assim, nas palavras de Judith Butler “mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou fim”. Outra teórica que Butler que utiliza na discussão é Luce Irigaray que afirmava que as mulheres são o sexo que não é uno. Em um mundo de linguagem masculina, as mulheres são o irrepresentável, são uma ausência linguística, o que é algo interessante de se pensar, justamente porque propõe uma superação da ideia da mulher como o oposto do homem, o feminino como o outro polo do masculino. E é a essa superação que Judith Butler nos convoca a pensar. Como ela mesma diz, desde Platão que a estrutura dual de realidade se somou à questão de gênero promovendo a ideia de que o masculino e o feminino são instâncias opostas ou, em uma versão atenuada, complementares. E é daí, justamente, que surgem estereótipos como a associação cultural que se costuma fazer entre mente e masculinidade e corpo e feminilidade.
A superação da lógica binária, na interpretação de Butler, pode nos auxiliar a darmos um passo positivo na compreensão da vida em sociedade. Com o rompimento da estrutura padronizada de sexo, gênero e desejo, poderíamos começar a pensar sobre as pessoas e não mais sobre as unidades de experiência que comportam a pretensa busca por uma identidade comum, qualquer que seja ela. Daí a conclusão de que o gênero se insere não como uma identidade, mas sim como uma performatividade constituída. Entender isso é um começo de mudança na direção de um mundo com menos controle do corpo e da sexualidade dos outros; um mundo em que nos ocupemos da felicidade, da completude, enfim, da própria vida e não da negação dela.
Esse texto foi publicado também em formato de podcast e vídeo.