Muitas coisas encantam os leitores: a capacidade de descrição do autor, o enredo da história, a trama bem feita, a escrita competente e (esse para mim é o principal) o caráter dos personagens. Acho que tudo na escrita pode ser aprendido, mas o aspecto menos mecânico do processo está na identificação que o autor consegue criar entre os leitores e os personagens.
A princípio pode parecer que não deveria ser essa a parte difícil. Afinal, somos humanos e convivemos com humanos desde sempre, observando seus trejeitos, comportamentos e vícios. No entanto, de alguma maneira que não sei explicar, a natureza dotou a maioria de nós com uma incapacidade gigantesca no que se refere à identificação do caráter humano. E é por isso que nos enganamos tanto com as pessoas e nos decepcionamos não só com os outros, mas até com nós mesmos. Mas não são todos que são assim. Os escritores possuem um olhar diferente para tudo que é humano e, justamente por isso, deve ser terrível ser observado por um escritor.
Comecei a ler recentemente o livro O Senhor das Moscas de William Golding, e, a despeito do universo curioso e intrigante apresentado pelo autor (uma ilha misteriosa), o que mais me encantou desde o início do livro é como aqueles personagens, tão impossíveis, tão curiosos e improváveis, podem parecer contraditoriamente tão reais e cotidianos. A passionalidade em cada um deles (crianças tentando sobreviver, sem nenhum adulto por perto), assim como o medo e a dor que os assola se torna, rapidamente, a de cada um dos leitores daquelas páginas. Não sei se este livro interessaria a todas as pessoas da mesma forma que me interessou (provavelmente não), mas todo mundo que ama a leitura tem um livro assim, um livro que te faz ver personagens não mais como personagens, mas como pessoas próximas que desde sempre estão fadadas a sumirem depois da última página — e que por isso mesmo se tornam um afeto e uma doença.
Uma coisa que sempre vou querer saber, mas que imagino que nenhum escritor saiba realmente explicar: como os personagens são criados?
O Senhor das Moscas, de William Golding