Li uma vez, em um texto biográfico sobre a vida de Kant, que suas últimas palavras, pouco antes de morrer, aos 80 anos, foram: “Está bom”.
Provavelmente não é verdade, mas gosto de pensar nessa caricatura construída sobre este indivíduo, que era tão certo e regular em seus hábitos quanto um relógio e que se via satisfeito com uma vida simples, sem sobressaltos e novidades. Nessa imagem, que os leitores sempre vão ter, dado a quantidade de biografias que reforçaram este estereótipo, Kant é o símbolo do homem inteiramente dedicado à sua obra, seus livros e suas questões profundas e quase indecifráveis; enfim, um ícone do que seria a própria filosofia (no seu pior e no seu melhor aspecto).
Não acredito na maioria dessas histórias, pois acho que somos sempre muitas coisas; e, com essas grandes figuras que são mais conhecidas por suas obras do que pela realidade de suas ações, certamente não era diferente. Ao mesmo tempo, é verdade também que criamos — ou deixamos que criem por nós — um simulacro da pessoa que somos, uma imagem ideal1, que vai ser mais ou menos aceita pelos outros.
É justamente por achar que essa imagem ideal — apesar de nem sempre ser um conjunto de coisas incríveis — é uma forma de proteção interessante para suportar a realidade da existência, que fico impressionado com o fato de as pessoas se exporem de maneira tão intensa e crua nas redes sociais. Não sobra quase nada para imaginar, para supor, para construir, além da realidade midiática que cada um vende de si mesmo. Mas ninguém vai ser realmente um bom empreendedor de suas próprias narrativas, e acabamos todos sucumbindo diante da falta de potência da representação que fazemos sozinhos de nós mesmos.
Sobre Kant, contam que um dia uma pessoa o convidou para um passeio que demorou muito e quebrou sua rotina. Ele, angustiado, ao chegar em casa, teria escrito uma máxima que passou a seguir religiosamente: “Nunca se deixar levar por alguém a uma viagem de passeio”2. Só o pensamento coletivo pode convencer os outros de que ele teria mesmo feito isso. E é por isso que não deveríamos investir tanto tempo tentando convencer os outros do que somos. São os outros que sabem, sempre.
Colagem de Anthony Zinonos