Rita Lee (o livro)

A memória é uma coisa estranha. Quando tentamos lembrar de fatos recentes ou de coisas que deveríamos lembrar, ela nos prega uma peça e esquecemos de tudo. Por outro lado, várias coisas que lembramos são na verdade um conjunto de invenções, pequenas mentiras que contamos a nós mesmos, querendo nos convencer de que realmente foi assim.

Quando terminei de ler a autobiografia da Rita Lee fiquei com um sentimento misto de encanto e desconfiança. O encanto veio por causa da escrita leve e pelas histórias narradas como uma conversa boa (apesar de algumas repetições estilísticas chatíssimas, como quando ela desanda a escrever “fofo” quase depois de cada parágrafo). Já a desconfiança vem de passagens que parecem um floreio pra mostrar que tudo é mais incrível do que pode de fato ser. Um exemplo: não duvido da paixão que existia entre ela e Roberto de Carvalho, mas o jeito que Rita Lee tenta ilustrar isso é dizendo que transou no hospital, no dia do nascimento do filho, depois de uma cesariana! Não tenho como dizer que isso é totalmente impossível, mas não é provável, você concorda?

De qualquer forma, essas passagens — meio apagadas, meio inventadas — fazem também a beleza e o mistério do texto. Além disso, sobre a vida dos outros só podemos acreditar ou desacreditar, nada mais. Se é verdade ou mentira, às vezes interessa um pouco, às vezes não importa nada. É a história dela, do jeito que ela lembra e quer contar. E — nisso você pode acreditar — ela conta muita coisa bacana. A biografia de Rita Lee se mistura com o Brasil dos anos setenta, com uma ditadura que ela viveu e pouco se importou (apesar de ter sido presa), com os que foram grandes mas passaram, com o pioneirismo que nem sempre foi reconhecido de uma mulher que fez rock em um meio dito de homens (e fazendo melhor do que muitos deles) e sem a qual o próprio rock brasileiro seria quase nada.

Rita Lee, o livro, vale muito a leitura. E Rita Lee, a artista, precisa ser ouvida e apreciada. Por algum tempo fui, como ela mesma diz no livro, um viúvo dos Mutantes, e só descobri a discografia dela recentemente. De certa forma, foi bom. Encontrei uma musicista e compositora com a qual não contava e esbarrei em uma contadora de histórias de primeira. Terminei o livro meio cético e ainda assim muito interessado em tudo que li. Qualquer autobiografia ruim pode estar cheia de verdades, mas o encanto e a curiosidade só aparecem nas boas. Essa, é assim.

Texto publicado originalmente em 21/02/2017

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo

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