Duvidar para fazer as perguntas certas
Estou lendo atualmente um livro sobre Montaigne chamado “Quando brinco com minha gata, como sei que ela não está brincando comigo?”. O título é longo e curioso, mas se justifica diante do ceticismo de Montaigne, que viveu e produziu sua obra durante o Renascimento, uma época de muitas certezas e de embates entre aqueles que acreditavam possuir certezas. Óbvio que muitas delas contraditórias entre si. Sobre a questão da gata, o que Montaigne questiona em um de seus ensaios é se os animais não possuem mesmo uma consciência, uma linguagem ou mesmo uma capacidade de decidir a partir de seus próprios critérios. Vale lembrar que Descartes defendia a condição da natureza mecânica dos outros animais e da própria natureza, em oposição à consciência humana. Essa foi a versão sobre a natureza mundo que venceu, mas Montaigne, colocando quase tudo em dúvida, coloca para si mesmo esse desafio: será que sou apenas eu que brinco com minha gata, ou ela me usa para que eu brinque com ela, quando ela quer, do jeito dela? A resposta pode parecer fácil, mas não é tanto assim.
Nesse livro, o autor, Saul Frampton, mescla textos de Montaigne com elementos de sua biografia. Importante dizer que os próprios textos dos “Ensaios”, principal obra de Montaigne, já são, quase todos, autobiográficos. Ensaio, aliás, é um termo que era utilizado na época para se referir à atividades de dança, à treinos militares, mas nunca à textos. Quando Montaigne escolhe trabalhar com a perspectiva de cada texto é, portanto, um ensaio, ele aponta para a ideia de que não são verdades puras que saem dali, mas observações, formas de se pôr em contato com a realidade.
Mas Frampton utiliza também o diário de viagem de Montaigne, que foi publicado postumamente. E nessa comparação existem elementos curiosos. Por exemplo: Montaigne era um francês rico, nobre e católico conservador. Nos “Ensaios” ele trata, naturalmente, o cristianismo com respeito e, ainda que respeite também outros credos e formas de se encarar a espiritualidade, não existem ressalvas à fé cristã. Já no diário de viagem (feito durante uma viagem de 17 meses, em que passou pela Suíça, Alemanha, Áustria e Itália, destino efetivo da viagem) Montaigne, em um texto escrito apenas para ele mesmo e não para ser publicado, observa o comportamento excessivo de padres da igreja, a venda de indulgências, os exorcismos públicos e retrata tudo isso com algum distanciamento, mas também com ceticismo. Será que é isso mesmo? Esse jeito de agir é o correto? Devemos acreditar em tudo?
É incrível, perceber, pelos textos de Montaigne que, apesar de estarmos em um mundo mais esclarecido e com mais acesso à informações, dados e pesquisas, ainda temos muito receio do ceticismo – ou, da medida certa, do ceticismo. Montaigne não duvidava de tudo, e quando fazia uso da dúvida não era porque queria simplesmente demonstrar sua própria opinião, mas porque não queria abdicar do direito de pensar. Duvidar para entender, para pensar melhor, para aprender a fazer as perguntas certas, é isso que não se fazia bem naquela época e que Montaigne queria fazer. Mas é isso também que ainda não aprendemos a fazer.
Foto de Martin Deja