O conhecimento acessível

Gosto muito da ideia de imaginar a cultura disponível em suas mais diversas formas, para o maior número de pessoas possível. Verdade: sempre haverá mais pessoas que não querem a literatura, a música ou o cinema do que aquelas que se importam genuinamente com isso. Mas talvez, justamente por isso, permitir que as pessoas encontrem livros, músicas e filmes da forma mais simples possível faça a diferença.

Quando estava na graduação, lembro que o lançamento de uma coleção de livros de baixo custo da editora Martin Claret gerou alguns debates acalorados na universidade, com professores reclamando dos estudantes que recorriam a esses livros e não a edições mais robustas, com extensão de notas, comentários etc. Hoje, com ebooks, edições em PDF e IA generativa que resume textos, fico um tanto curioso para saber como eles estão se sentindo.

Aliás, esse exemplo da Martin Claret me lembra outro que li em "Uma história da leitura" (de Alberto Manguel) sobre as edições da Penguin Books. Hoje essas edições são bem avaliadas, mas, quando surgiram, eram edições básicas, vendidas a um preço muito baixo em mercados populares. Afinal, “por que não tratar os livros como objetos do dia a dia, tão necessários e tão disponíveis quanto meias e chá?” (p. 170).

De acordo com Alberto Manguel, George Orwell, por exemplo, não gostava dessa ideia de baratear os livros porque essa ação “seria uma coisa excelente para a literatura, mas péssima para o negócio” (p. 171). No final, foi bom dos dois jeitos. Mais pessoas tiveram acesso a livros, e mais livros foram vendidos, desde os mais simples até as edições mais robustas.

Mas não é necessariamente assim que as coisas vão funcionar daqui para frente. Ainda que o mercado de livros esteja indo bem, não é simples prever um futuro próximo em que a própria produção cultural pode ser colapsada por um processo de inundação de artefatos culturais criados por IA generativa. Em um cenário desse tipo, em que as pessoas passem a consumir cada vez mais coisas pelas redes sociais (e, na maioria das vezes, conteúdos sintéticos, gerados por IA com base em outras coisas feitas por máquinas), ter acesso a produtos culturais confiáveis será cada vez mais importante.

Na instituição em que trabalho — e acho que acontece o mesmo em outros lugares — a biblioteca atrai sempre mais pessoas interessadas em usar o espaço para estudar para concursos do que leitores do acervo. Esse tipo de coisa sempre me faz pensar sobre o destino dos locais voltados para o acesso a cultura: as galerias fazem parte mais de um roteiro social do que de uma experiência com a arte, assim como shows de música atraem por outros fatores mais do que pela música em si1.

À medida em que o desinteresse por livros, dança, teatro e cinema avança, precisamos pensar em como manter a cultura viva. A disponibilidade de produtos culturais talvez seja algo essencial. Por isso, iniciativas como Open Culture, Ubu Web e tantas outras são extremamente importantes. Essas plataformas oferecem oportunidades e evocam um espírito de coletividade que sempre esteve na base da ideia de uma internet livre e comprometida com valores humanos. Deixar que o acesso à cultura se perca (nas suas diferentes formas, desde livros físicos de baixo custo até sites com vídeos sem propagandas de apostas) em troca de mais entretenimento e de informações rápidas geradas por IA pode ser um caminho sem volta; um caminho que, no fim, apenas piora a nossa relação com o mundo.


Me desfiz da maioria, mas ainda tenho algumas edições da Martin Claret

  1. Há alguns anos, em um show do Paul McCartney em Brasília, um grupo de amigos na fila atrás de mim se divertia bebendo, conversando e rindo o tempo todo, sem dar a mínima bola para o show. Eles pagaram para estar lá como qualquer outra pessoa (imagino). Mas é no mínimo curioso que eles tenham escolhido pagar um preço tão alto para beber uma cerveja cara e conversar, sem interesse algum pelo Beatle que estava logo ali.