A releitura como forma de reencontro

Quando saí da escola e não passei logo no vestibular, fiquei meio perdido. Eu não gostava de ficar em casa, então ia para o centro da cidade e passava a maior parte do tempo nas bibliotecas do Sesc ou na Biblioteca Pública, as duas perto da praça Deodoro, em São Luís.

Às vezes, aconteciam exposições ou recitais de poesia no Sesc, e eu costumava ficar por lá também. Nisso, acabei acompanhando vários recitais com um grupo de atores e escritores que sempre via por lá. Um dia, indo para a Biblioteca Pública, cruzei na rua com uma das atrizes desse grupo (esqueci o nome dela), mas vi, pelo olhar dela, que ela me reconheceu, e fiz um pedido:

“Tô indo pra biblioteca, me indica um livro”.

E ela disse, passando por mim e sem parar:

“Lê Coiote, do Roberto Freire”.

Nunca tinha ouvido falar. Nem do livro, nem do autor.

Entrei na biblioteca, encontrei o livro, sentei naquelas mesas com um monte de gente passando tempo ou lendo aqueles jornais presos nuns pedaços de madeira (se você entende isso, deve ter uma idade próxima à minha) e comecei a leitura.

Fiquei impressionado. O começo do livro era muito, mas muito bom mesmo. Peguei o livro emprestado e li rapidinho, em poucos dias. E nunca agradeci àquela pessoa que olhou pra mim e pensou, entre tantas possibilidades, justamente naquele livro (e por quê, aliás?)

Muitos anos depois, já em Brasília, lembrei do livro e procurei na internet, só para descobrir que não tinha edição nova ou republicações recentes. Só dava pra encontrar em sites de venda de usados.

Como não gosto de comprar livro usado sem poder ver e ter certeza do estado, sempre que entrava em um sebo aqui em Brasília eu dava uma olhada na seção de literatura brasileira: autores, letra F, Freire, Roberto, e nunca encontrava o que eu queria. Apenas edições de outros livros dele, como Cléo e Daniel, que eu li depois de Coiote. Uma curiosidade é que Coiote é, na verdade, continuação direta de Cléo e Daniel, e este tem edições recentes, sendo relativamente fácil encontrar uma edição nova em livrarias. Isso me intrigava e me incomodava, porque não gostei tanto de Cléo e Daniel quanto de Coiote, mas não lembrava de tantas coisas, só do começo (já falei que o começo desse livro é muito bom?1).

Mas um dia, no começo de 2023, entrei no Sebinho com Arthur, olhei a seção de sempre, e lá estava o livro, usado, mas como novo. Incrível. Comprei e, meio que inexplicavelmente, demorei muito para ler. Lia um pouquinho às vezes, depois abandonava e só retomei um ritmo de leitura mesmo no segundo semestre de 2024. Terminei a leitura no fim do ano.

Não digo que foi decepcionante, mas foi estranho. Primeiro, agora entendo por que não fizeram relançamentos. Coiote tem zoofilia, pedofilia, cenas de estupro, incesto, incentivo ao uso de drogas, duendes (?); enfim, um conjunto de coisas difíceis de engolir e justificar, especialmente por conta do cinismo que o autor emprega ao tratar desses temas. Mas o pior é que, do meio para o final, o livro vira mais uma propaganda da Soma (a teoria anarquista que Roberto Freire criou) do que literatura.

Apesar disso, não mudou a minha impressão inicial de que Coiote é um livro bem escrito, com personagens interessantes, e que instiga o leitor, seja pela curiosidade em saber mais sobre alguns desses indivíduos perturbadores que Roberto Freire nos apresenta ou para entender em que ponto a narrativa pode chegar. Mas terminei o livro pensando em como o Marcos Ramon de 18 anos era capaz de se empolgar com esse texto que hoje não me encanta mais.

Talvez isso tenha acontecido porque achei que Coiote ia me fazer sentir as sensações que eu tinha no final da adolescência. Mas eu não queria isso de verdade, para ser sincero. Porque quem eu era não existe mais, nem pode existir. A minha vida só pode ser essa de agora. Reler o livro não fez com que eu resgatasse tanto assim do que eu era, mas me ajudou a entender melhor quem eu sou. Tem gente que acha essa experiência muito ruim, de reler livros ou assistir a filmes que amávamos muitos anos depois, porque há o risco da decepção.

Agora que reli esse livro que eu amava tanto e não me empolguei como imaginava, reforço um pensamento contrário ao comum: reler é melhor do que ler (Schopenhauer escreveu sobre isso, aliás). Porque, ao reler, aprendemos mais sobre o texto, mas, principalmente, aprendemos mais sobre nós mesmos, nos reencontramos com o que somos agora. E isso, por si só, já vale o risco.

  1. Eu nunca tinha esquecido, por exemplo, da cena de uma mulher em uma instituição psiquiátrica, sendo arrastada por enfermeiros e recitando o discurso de Brutus no Júlio César, de Shakespeare. Épico. 

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo

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