Entre deuses e homens
Luc Ferry argumenta que existem três tarefas que toda grande filosofia busca explorar1: 1) o desenvolvimento de uma teoria; 2) uma concepção de moral; e 3) uma doutrina de salvação sem Deus. Falando sobre Nietzsche, e tentando encaixar essa forma de ver a filosofia na obra do autor alemão, Ferry se depara com a dificuldade de encontrar uma unidade teórica e metodológica em obras tão distantes quanto Assim Falou Zaratustra, Humano, Demasiado Humano e Ecce Homo. Ainda assim, ele acredita que em Nietzsche os três elementos aparecem com distinção suficiente para qualquer um perceber — desde que leia as obras e não os comentadores. Pode parecer estranho que ele diga isso sendo ele mesmo um comentador. Mas ele propõe também um convite à leitura do autor para além de sua interpretação. Portanto, o resumo das ideias que apresento aqui (baseadas principalmente na leitura do texto de Luc Ferry) precisam de confrontação com os textos do próprio Nietzsche, tarefa aliás necessária sempre que se lê um autor por meio de outros.
O que Ferry critica nos comentadores ortodoxos de Nietzsche — e, sim, é engraçado que isso exista — é o fato de que, para a maioria deles, Nietzsche foi um filósofo que defendeu a destruição da modernidade, mas não propôs nada para ficar no lugar. No entanto, ainda que em seu estilo poético, Nietzsche apresentou algumas propostas sim, e Luc Ferry acredita que elas se encaixam no modelo estabelecido por ele para definir o pensamento filosófico. Para começar, Nietzsche possui uma teoria focada na crítica à racionalidade, a genealogia, que possui como método a desconstrução dos valores estabelecidos. Há quem veja certa incoerência nisto, já que é mais fácil imaginarmos que estamos diante de uma anti-teoria. Ainda assim, estabelecer uma crítica ao Iluminismo, ao tecnicismo e à preponderância do pensamento lógico é, de alguma forma, assumir um posicionamento diante daquilo que é menos importante, mas sem supor a mera destruição de tudo. Esse é um dos pontos essenciais da discussão que Ferry retoma em sua leitura de Nietzsche. A crítica à racionalidade não se configura, necessariamente, como um apelo à irracionalidade pura e simples. E Ferry cita várias passagens de Nietzsche em que este mostra seu apreço pelo conhecimento, pela argumentação e pelo desenvolvimento do pensamento. A questão, portanto, não é que o pensamento racional é ruim. Mas sim que ele, na opinião de Nietzsche, não deveria estar no topo da hierarquia do pensamento, mas sim subordinado à experiência estética.
E aqui seguimos para o segundo ponto, a constituição de uma moral. Essa formulação se dá no que Nietzsche chamou, no livro Vontade de Potência, de grande estilo. A única maneira de encarar a vida sem medo, é assumir a atitude do artista, vivendo a vida com essa “vontade de ter vontade”, se entregando às circunstâncias enquanto se busca o controle das ações. Esse caminho do meio entre o apolíneo e o dionisíaco, determina a condição do indivíduo para a supressão da sensação do niilismo na vida. Nietzsche — e a biografia que Rüdiger Safranski escreveu sobre ele mostra muito bem isso2 — se via como um aristocrata e defendia essa postura diante da banalidade da existência. É, portanto, ingênuo imaginar que Nietzsche se veria próximo de movimentos como a contracultura dos anos 1960 ou com a pura rebeldia da juventude, que se manifesta de tempos em tempos das mais variadas formas. Não por acaso, o modelo de arte para Nietzsche (pelo menos no que é expresso em Vontade Potência) era o classicismo (arte bela, técnica, planejada, matemática) em oposição ao romantismo (em que ele via subjetividade e fraqueza). É verdade que esse texto utilizado por Ferry é um texto póstumo, não publicado diretamente por Nietzsche, e há quem conteste a sustentação das ideias apresentadas ali como parte do projeto filosófico/literário do autor alemão. No entanto, desde seus primeiros textos, Nietzsche faz elogio à grande arte grega em detrimento da deterioração da cultura de sua época, e mais tarde critica o Romantismo de Richard Wagner e a idealização pessimista de Schopenhauer na forma como este via a arte como sublimação. Faz sentido, portanto, perceber a estética de Nietzsche como parte de seu projeto moral: o que se busca é sempre o virtuoso e o excelente.
Essa proposta está longe de representar um ideal para a existência. Nietzsche era absolutamente contrário aos idealismos, mas nem por isso deixava de ver a possibilidade de uma hierarquização das forças vitais que nos afetam. A moral nietzscheana, portanto, não propõe uma prescrição baseada em qualquer tipo de recompensa, mas sim a ideia de que a boa vida, a vida elegante (Heidegger vai chamar depois isso de vida autêntica) é aquela que é mais intensa, de forma que a vontade não se dilacere, mas sim coopere para a supressão do ressentimento, do sentimento de fraqueza ou submissão. Nietzsche amava a ideia de que a sua moral era aristocrática, não no sentido de favorecer os poderosos, mas no sentido original do termo aristocrático, que tem conexão como a palavra areté (excelência, valor). Ser virtuoso, portanto, não é um ato de caridade, mas sim de excelência, de fazer o melhor que se pode fazer. Esse é o grande estilo: se mostrar como “senhor do caos interior” (Vontade de Potência).
Por fim, existe ainda a questão da doutrina da salvação sem Deus, que Ferry identifica nas metáforas do Eterno Retorno e do Amor Fati. A proposta de Nietzsche segue na linha de uma reflexão intensa sobre o sentido intrínseco da vida. Ou seja, enquanto outros sistemas morais depositam sua esperança no além, na transcendência, Nietzsche entendia que a vida deveria ter valor por ela mesma. Logo, a “salvação” se encontra na dignidade de encarar a vida da maneira como ela se apresenta. Amar o próprio destino (afinal, não temos outra vida que não a nossa) faz parte desse processo e o Eterno Retorno é a metáfora perfeita para esse modelo de reflexão. Se você tivesse que reviver o dia de hoje mais uma vez, do jeito que aconteceu, sem mudar nada, você sentiria orgulho do que realizou? Essa é a questão central do Eterno Retorno: tornar todos os dias da sua vida dignos de serem revividos. Viver de forma intensa, mas com responsabilidade, sabendo que cada ação, cada escolha importa. De fato, essa é uma forma bem distinta de se encarar a ideia de salvação. Se é que isso faz sentido. Afinal, quem define isso assim é Luc Ferry, e não Nietzsche.
Nietzsche foi uma figura controversa e ele mesmo um homem atormentado por suas ideias e sentimentos. Era capaz de defender a escravidão como mal necessário para o desenvolvimento da grande cultura3 e ao mesmo tempo sustentar uma admiração ao poder da cultura do povo. O fato de Nietzsche ser um ídolo para quem se coloca contra o sistema hegemônico e a noção aristocrática de arte e cultura é sintomático de nossa época, ainda que em parte seja “culpa” da escrita obscura desse filólogo, que comprou briga com o meio acadêmico, mas tinha o sonho de ser reconhecido por todos eles. Mais do que tudo, Nietzsche foi um pensador original, fiel aos seus desejos e convicções e, como tal, não isento de falhas e concessões. Isso tudo é, ele diria, humano. O erro, portanto, está em parte em quem lê, pois buscamos deuses onde só podemos encontrar outros homens, não tão diferentes em seus defeitos do que nós mesmos.
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FERRY, Luc. Aprender a Viver: filosofia para os novos tempos. Rio de janeiro: Objetiva, 2012 (Kindle edition). ↩
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SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. Geração editorial. Kindle edition. ↩
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Rüdiger Safranski mostra um série de cartas a amigos e a Cosima e Richard Wagner em que Nietzsche defende que a tese de que “toda cultura elevada precisa de uma classe de homens para explorar, para fazer o trabalho. Uma classe de escravos” (Nietzsche In: SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. Geração editorial. Kindle edition, pos. 1078). Esse mesmo argumento aparece em uma versão preliminar de O nascimento da tragédia e em outros textos da juventude. ↩