Calvin é filho da década de 1980

Calvin e Hobbes no mundo real / Michael S. Den Beste

Para não ler uma tirinha do Calvin ingenuamente

Calvin e Hobbes, de Bill Watterson, é uma das minhas tirinhas prediletas (só perde pros Peanuts!) e estava pensando um dia desses que o Calvin é um pouco injustiçado. Não que a tirinha não seja um sucesso, pelo contrário. Aqui não me refiro ao quadrinho como um todo, mas ao personagem Calvin.

Geralmente ele é lembrado apenas como um garoto mal criado, do qual a gente ri porque está longe, já que por perto ele daria muito raiva. E nisso se encerra a percepção que a maioria das pessoas tem do Calvin. Mas acho que não é bem assim. O Calvin não é só isso. E pensando com meus botões decidi escrever alguns lembretes para não lermos Calvin ingenuamente. Então, lá vai:

Se você não foi criança nos anos oitenta ou nem estava vivo naquela época, vai achar que o Calvin tem atitudes um pouco estranhas. Coisas como ficar louco pra brincar na rua (e não no computador), adorar televisão (e não internet), ter os quadrinhos como sua literatura definitiva (no lugar de textos avulsos na Internet como esse que você está lendo), fugir das meninas por timidez (em vez de tentar “ficar” com elas na marra) etc. Dizer isso é importante pra não parecer que o Calvin é um menino louco que anda com um bicho de pelúcia, brinca sozinho e não gosta de se comunicar com ninguém. Quando eu era criança a gente brincava sozinho, mas hoje é diferente. Quando uma criança está sozinha diante do videogame jogando um jogo online qualquer ela está, querendo ou não, junto com algumas dezenas ou centenas de pessoas conectadas a ela! Eu sei, isso é tão natural que parece que sempre existiu, mas o Calvin só precisava dele mesmo pra se divertir. Era assim…

Essa pode ser a impressão inicial. Um menino que faz o que o Calvin faz, na escola, com os pais, com a babá… Ele é tão ruim que não poderia existir! Mas eu penso diferente. Acho que o Calvin representa o tipo ideal de criança. Não que eu queira que todas as crianças sejam como Calvin. (Não sei o que vou fazer se Arthur, o meu filho, ficar igual a ele…) O que eu quero dizer é que Calvin é o tipo ideal no sentido de manter o que todas as crianças têm naturalmente: predisposição para a admiração, para a criatividade, vontade de inovar, de se divertir, de questionar, de quebrar regras… Se algumas crianças não fazem isso, se você não fez isso, é porque alguém impediu. Felizmente Calvin é mais forte do que aqueles que tentam impedi-lo. E nos mostra o que é ser uma criança de verdade! Sem neuras, sem responsabilidade, sem obediência falsa. Simplesmente criança.

Lendo Calvin você certamente já se deparou com uma ou outra tirinha que trata de ecologia ou de ética ou de algum outro tema assim importante. Daí você deve ter pensado: “Que moralismo falso! Ainda num menino como o Calvin… Ele nunca ia se importar com essas coisas!” Eu penso diferente. As crianças vivem no mesmo mundo que nós adultos. E se incomodam sim com questões mais sérias. Também não transformam isso em uma passeata ou em uma mobilização nacional. E nem o Calvin faz isso. O que ele faz é parar um pouco pra olhar o mundo dele e, ora, se tem algo errado, ele se incomoda! Talvez não tenha o que fazer naquele momento, mas o incômodo está lá. Imagina só se a gente não perdesse o incômodo da infância com as coisas que mais importam. Um mundo mais Calvin seria bem melhor.

Pois é, é isso. Agora vou parar isso aqui e ler mais umas tirinhas…