A matéria das memórias

Quando passa o tempo e nos distanciamos dos fatos, construímos uma teia de lembranças que insistimos serem o equivalente aos fatos. Mas, lá no fundo, todo mundo intui que as memórias são uma invenção; nem sempre uma invenção voluntária, é verdade, mas ainda assim uma criação particular e nada isenta.

As nossas lembranças são uma defesa que fazemos de nós mesmos. Nem sempre conseguimos evitar aquelas lembranças que nos ofendem e agridem — afinal, o que desagrada às vezes é tão forte que é impossível esquecer. Mas as memórias mais fortes que possuímos quase sempre surgem de uma operação inconsciente, tal como uma cirurgia que pela simples presença de suas marcas nos permite acreditar que aquilo efetivamente aconteceu.

Não existem fatos nas memórias. As lembranças são feitas de sonhos, vontades e arrependimento. E talvez isso seja uma dádiva, pois assim não precisamos conviver com as verdades mais insistentes e definitivas que existem — aquelas que nos dizem quem somos.

Foto de Paul Schneggenburger