Quatro minutos e trinta e três segundos

O músico norte americano John Cage apresentou ao público, em 29 de Agosto de 1952, a composição 4'33". A proposta era muito simples. David Tudor, pianista, subiu ao palco do Maverick Concert Hall, em Nova York, sentou-se ao piano e durante 4'33" ficou lá, sem tocar uma nota sequer. Apesar do óbvio, é interessante perceber que a composição em questão, pelo menos para mim, não trata de silêncio, mas sim da impossibilidade do silêncio. Quando o músico não toca nota nenhuma, outros sons se tornam audíveis: os ruídos que fazemos, nossa respiração, nossas inquietudes…

Quando imaginamos o que seja o silêncio queremos imaginar algo como isso aqui… Mas esses segundos de nada que eu coloquei não são o silêncio do mundo real. O silêncio do mundo real vai ser mais parecido com isso aqui… Então, o que existem são sons e o questionamento da composição de Cage é se esses sons podem ser chamados de música. Além disso, pra mim, essa composição levanta uma questão extremamente importante para entendermos o tipo de vida que temos hoje: a nossa dificuldade em lidar com o que somos.

John Cage sempre teve um espírito inquieto. No anuário da escola em que ele estudou estava escrito, sobre ele: “Conhecido por: ser radical”. Cage nasceu em 1912 e o pai dele era inventor (ele projetou, por exemplo, um dos primeiros submarinos realmente funcionais) e a sua mãe escrevia textos para o público feminino do “Los Angeles Times”. Antes de decidir se dedicar à música, Cage se envolveu com as artes plásticas e com a arquitetura, o que explica, em parte, sua paixão pelos espaços, pelas instalações, pelas performances. Além disso, Cage levou para a música algo que motivou muitos artistas plásticos do início do século XX: a ideia de que arte — e no caso dele, a música — não deve, necessariamente, acalmar, tranquilizar o ouvinte, o espectador. A arte também pode estimular, trazer o questionamento, a confusão.

As primeiras composições conhecidas de Cage, nos anos de 1930 e 1940, são inicialmente percussivas e depois chegam quase a ser melódicas e tranquilas, mas expressavam já, à sua maneira, o questionamento do compositor em relação aos limites da música, questionamento esse que só vai crescendo ao longo dos anos. A música que você está ouvindo agora, por exemplo, é uma composição de 1947 em homenagem à Marcel Duchamp, um dos ídolos de Cage, e é executada com um piano preparado, ou seja, um piano com objetos entre as cordas do instrumento. Isso permite uma sonoridade estranha, imprevisível e aleatória, mas não elimina o cuidado com a melodia e com os silêncios…

Com o tempo as composições de Cage foram se tornando mais e mais cheias de diferentes sonoridades e acasos. “Water walk”, por exemplo, era uma composição em que Cage tocava acordes em um piano, usava um apito, um pato de borracha, regava flores em uma banheira, derrubava rádios no chão e batia a tampa do teclado do piano, entre outras coisas. Ele apresentou “Water walk” em um programa de televisão muito popular nos EUA em 1960 e essa gravação está disponível no Youtube (vou colocar o link para o vídeo nas notas desse episódio). Antes da performance Cage explica ao apresentador que ele entendia a música como a produção de sons e que ali iria experimentar justamente essa possibilidade das diferentes sonoridades. O apresentador então fala para ele que, provavelmente, os espectadores iriam rir. E ele respondeu: “Eu prefiro o riso às lágrimas”:

Me ouvindo falar sobre Cage hoje é possível que muito gente imagine ele como um homem excêntrico, boa vida, que tinha poucas preocupações. Mas na verdade a vida de John Cage era bem difícil, principalmente do ponto de vista financeiro. Durante boa parte do seu auge criativo Cage viveu em uma cabana alugada que media três por seis metros. Ele estava apenas um pouco acima da linha da pobreza, contando cada centavo que gastava. No final dos anos 1950 a vida financeira melhorou um pouco, mas não por causa da música. Cage começou a se interessar por cogumelos, que ele catava em suas caminhadas, e foi cofundador da Sociedade Micológica de Nova York. Ele estudou muito sobre cogumelos, se tornou um perito no assunto e passou a fornecer cogumelos para restaurantes de luxo de Nova York, o que rendeu certamente algum dinheiro. Em 1959, quando estava na Itália, ele participou de um programa de perguntas e respostas em que o participante escolhia o tema sobre o qual gostaria de responder. Mas Cage não escolheu responder sobre música e sim sobre cogumelos. Nesse programa ele acertou todas as respostas e ganhou 8 mil dólares. Com parte do dinheiro ele comprou uma kombi para a companhia de dança do companheiro dele: o dançarino e coreógrafo Merce Cunningham. A parceria deles e a influência mútua que exerceram um sobre o outro é tema para um outro episódio, mas basta aqui dizer que Cage foi muito importante para o trabalho de Cunningham em relação às bases da dança contemporânea, da mesma forma que Cunningham foi importante para os experimentos com o acaso e a aleatoridade que Cage desenvolveu.

Mas voltando ao início da minha fala: 4'33'’, como eu já disse, foi apresentada pela primeira vez em 1952 e é a composição pela qual Cage é mais lembrado, o que é incrivelmente simbólico, já que é a única em que ele não propõe que se toque nada, nem pianos, nem patos de borracha, nem jarros d’água. Nessa composição existe a influência do zen budismo, mas existe também a constatação do mundo moderno, dos ruídos que nos cercam, da onipresença de um mundo cada vez mais repleto de pessoas e máquinas. O último apartamento em que Cage viveu, junto com Cunningham, foi um apartamento em uma esquina da rua 18 com a sexta avenida em Nova York, um lugar extremamente movimentado, repleto de ruídos e barulhos de todo tipo. Em uma entrevista já no fim da vida (Cage morreu em 1992, um dia depois de ter tido um derrame) ele fala sobre esse apartamento e sobre como era estimulante viver ali e nunca ter silêncio de nenhum tipo. E é por isso que penso que 4'33'’ não fala de silêncio, mas de disponibilidade para escutar os ruídos que nos cercam.

Além disso, tem outra coisa que me intriga nessa composição: o próprio tempo. Se você pensar bem, 4'33" é um tempo bem pequeno pra algumas atividades. Se você for ao banco e o tempo de espera na fila for de apenas 4'33", você vai ficar muito feliz, pois o atendimento foi rapidíssimo. Mas ficar numa sala de concerto, durante 4'33", esperando algo acontecer quando aparentemente nada está acontecendo, é insuportável.

É insuportável ter que parar e observar as coisas ao nosso redor. É insuportável ter que lidar com a ansiedade e com a esperança de que algo surpreendente aconteça. É insuportável ter que simplesmente esperar e ouvir; ouvir a ausência de silêncio.

Mas, olha, são só 4'33"!

Na verdade, não. É mais do que isso. É o tempo de uma vida inteira, condensado em um experimento que, semelhante a ideia do eterno retorno de Nietzsche, nos coloca diante da mais difícil questão: nós aceitamos ser o que somos?

Então, finalizando esse episódio, eu te proponho um experimento, muito simples. Você deve ficar 4'33" sem fazer absolutamente nada além de escutar tudo o que está acontecendo perto de você. Então, será que você consegue? Tenta e me deixa um comentário dizendo como foi. Eu queria colocar 4'33'’ de silêncio aqui nessa faixa, mas vi dia desses que alguém foi notificado no Soundcloud por ter feito isso e o Soundcloud tirou a faixa do ar, por uso ilegal da composição 4'33'’ de John Cage, ou seja, por uso ilegal do silêncio.

Mas você não precisa de um silêncio que não existe para tentar fazer o que eu te pedi. É só começar. E pode ser… agora.