Pra quem é a vida acadêmica?
A palavra “academia” remonta à escola de Platão. O nome vem de Akademos, um herói ático a quem era dedicado o jardim onde Platão montou a sua escola. Neste lugar, Platão e seus discípulos se dedicavam à filosofia, à matemática e à prática da ginástica (por isso usamos ainda hoje o termo “academia” também no sentido de “lugar em que se pratica atividades físicas”). Na entrada da Academia de Atenas, diz-se, estava escrito: “Quem não é geômetra não entre!”. E isso, por si só, já é uma síntese do que vou escrever aqui: a vida acadêmica não é para todos.
A democratização do ensino
Eu tive uma aluna na graduação que, no segundo período, cursando uma disciplina sobre Estética e indignada com sua dificuldade em entender Nietzsche, Adorno e Heidegger, me confessou, com toda a brutalidade de quem diz a verdade, que não entendia por que ainda existia a obrigação da leitura e da escrita em uma graduação. “Não podemos apenas falar sobre o que já conhecemos e vivemos? Temos mesmo que ler e discutir o que os outros pensaram?”, dizia ela, e a dureza dessas perguntas me consumia de medo, porque ali se externalizava uma contradição da nossa utopia educacional moderna; a utopia que defende que todos devem ir para a Universidade.
Eu sou, ao mesmo tempo, a favor e contra a democratização do ensino. Sou a favor porque quero viver em um mundo em que mais e mais pessoas possam ter a Universidade como um caminho, com oportunidades justas e acesso ao conhecimento. Mas sou contra porque a vida acadêmica não é pra todo mundo; contudo, o que é disseminado é que todos devem ir para a Universidade, já que com um diploma de graduação se tem mais chance de se conseguir um emprego e melhores salários — o que não é necessariamente verdade, principalmente se você não for competente naquilo que faz.
A vida acadêmica depende da produção do conhecimento e do respeito à tradição estabelecida (o que não quer dizer submissão, pois podemos ter respeito mesmo por ideias contrárias às nossas). Só que nem todo mundo quer isso, e tudo bem. Mas quando todos querem a Universidade e não querem assumir o compromisso com o conhecimento, a própria ideia da valorização da vida acadêmica deixa de existir. Max Weber, em Ciência como Vocação, escreveu que quem não tem “vocação para a ciência; que faça outra coisa. Pois nada tem valor para o homem enquanto homem, se o não puder fazer com paixão”. E é exatamente esse o caso. Pessoas que buscam a vida acadêmica sem paixão por ela, não serão bons profissionais e, nesse caso, o seu diploma, se o conseguirem, terá pouquíssima valia.
Pensar o mundo
A vocação para o conhecimento é aquilo que nos empurra para a reflexão sobre o mundo em que estamos. Não acho que todos devam querer se dedicar a isso. Mas o problema é que, mesmo não tendo afinidade com esse destino, muitas pessoas se lançam na direção da vida acadêmica, e se esforçam para mudar não a si mesmas, mas a própria academia. Conheço pessoas — e não são poucas — que fizeram um curso superior apenas para poderem concorrer em concursos públicos genéricos que exigiam um curso de graduação em qualquer área. Tive um aluno que, já sendo funcionário público, entrou na graduação pra se qualificar para um aumento de salário. Outros entram porque não tem certeza ainda do que querem. Não existe crime em nada disso. Cada um tem direito de fazer o que quer, desde que não fira aos outros. O que não se pode permitir, justamente para evitar — agora sim — um crime, é que pessoas que não tem interesse na vida acadêmica passem por um curso superior sem compreender o que ele exige e demanda delas.
Se costuma atribuir as falhas do ensino superior à pouca valorização que se dá ao ensino. Mas valorizar o ensino é valorizar a produção do conhecimento e se comprometer com essa tarefa. Fazer vista grossa para estudantes que não querem ser estudantes é desvalorizar não só a atividade do ensino, mas a própria tradição do conhecimento, que cabe a todos os envolvidos na vida acadêmica resguardar.
Um caminho pra todos, que deve ser seguido por alguns
Sobre a aluna que mencionei no início do texto: eu insisti que ela tinha quer ler, que não tinha jeito. Ela leu, escreveu e passou na minha disciplina sem muita empolgação e ainda reclamando de tudo. Um outro estudante, em um semestre diferente, foi mais coerente. Depois de reprovar duas vezes comigo e eu perguntar por que ele nunca fazia nenhuma tarefa exigida, ele me disse que na verdade não tinha intenção de terminar o curso; só o que ele queria era assistir às aulas e se apropriar do que achava importante. E pouco tempo depois, de fato, ele largou o curso. Não sei o que ele faz da vida hoje e nem sei o que o motivou realmente a largar a graduação. De qualquer forma, gosto de pensar que aquilo realmente não era pra ele, e que ele encontrou outra coisa pra se dedicar, pra investir o seu esforço e talento — porque todo mundo tem algum, seja lá qual for.
Nem todo mundo precisa ter apreço pela leitura, pela investigação e pela reflexão; mas quem se lança na vida acadêmica precisa estar consciente de que, por força da circunstância que envolve o próprio processo do conhecimento, cada um ali se torna guardião desse modelo de ser e de viver. A Universidade é pra todo mundo porque ela precisa ser sempre um direito de todos. Mas a Universidade não é um lugar em que todos precisam estar, porque a vida não tem que ser uma via de mão única, com todos trilhando os mesmos caminhos. Assim, uma tarefa importantíssima no Ensino Médio — e que pouco se faz — é proporcionar aos estudantes um vislumbre do que é realmente a vida acadêmica, para além das decorebas de conteúdo e das provas. Se isso existisse, talvez as pessoas entendessem melhor se a vida acadêmica representa, de fato, algo que elas desejam e que vale o seu esforço e dedicação.