Um novo jeito de falar o nome do técnico da seleção

Ou como é importante controlar a narrativa até nas coisas mais bobas

Carlo Ancelotti foi anunciado como técnico da seleção brasileira há apenas algumas semanas. E aí, já nos dias seguintes, notei algo curioso. Assistindo a uma partida do Campeonato Brasileiro, vi o narrador falar “Carlo Ancelotti”, com um  bem brasileiro, e não “Carlo Antchelótti”, que é como eu sempre ouvi os repórteres e narradores pronunciarem. Pensei que era só o jeito daquela pessoa específica falar, mas depois um comentarista falou do mesmo modo, e no dia seguinte o William Bonner também, no Jornal Nacional. Então eu pensei: “ora, tem alguma coisa diferente aí…”

Antes de seguir com meu comentário, preciso dizer que não sou contra abrasileirar os nomes próprios, pelo contrário. Aliás, pessoas no mundo todo adaptam os nomes de outras pessoas para uma forma mais confortável. Então, assim como pessoas que falam inglês vão ter dificuldade para dizer “Paulo Freire”, e japoneses vão penar para falar “Machado de Assis”, eu mesmo (e 90% da população brasileira) nunca vou conseguir falar “Goethe” do jeito certo.

Dito isto, não sou alguém que acha errado fazer adaptações em nomes próprios. Mas claro que tudo tem limite. Por exemplo, quando eu estava na graduação, tinha uns livros de filosofia um pouco antigos na biblioteca da UFMA, com traduções de português de Portugal. Então, era possível emprestar um livro do Martinho Heidegger, do Frederico Nietzsche e até mesmo do João Paulo Sartre. Mas isso, sinceramente, eu acho inaceitável. Prefiro fazer uma pesquisa toda vez que tenho que escrever Georg Wilhelm Friedrich Hegel do que escrever Jorge Guilherme Frederico Hegel.

Mas voltando ao assunto… Durante décadas ninguém discutia o modo de falar o nome de Ancelotti. Sempre foi, em todos os canais e veículos de comunicação do Brasil, Antchelótti. Até porque nem é um nome tão complicado de pronunciar. Daí meu estranhamento com essa mudança, feita especificamente nos canais da Globo. Quando comentei com minha esposa, ela perguntou: “Mas será que se fala desse jeito mesmo na Itália?”. E, a julgar por essa entrevista, de um canal de tevê italiano, é Antchelótti mesmo.

E isso importa? Ou tanto faz? Eu acho que importa, no sentido de que uma empresa de comunicação quer assumir o protagonismo até mesmo nesse fato tão banal, que é controlar o jeito como as pessoas, no dia a dia, vão falar o nome desse cidadão.

Até imagino que, na reunião em que decidiram isso, o motivo apontado tenha sido algo nobre: facilitar para o torcedor brasileiro. Provavelmente pensaram que as pessoas que estiverem discutindo o resultado de algum jogo no bar, depois de três ou quatro cervejas, falariam AngelottiAntrelottiXexelotti; tudo, menos o nome do cara. Então, falar abrasileirado deixa tudo mais simples.

Só que, como eu disse antes, esse técnico é uma figura conhecida no universo futebolístico há décadas, e o nome dele sempre foi falado no Brasil de um jeito mais parecido com o modo italiano. Por isso, acho que, mais do que boa vontade com o torcedor, a intenção é controlar a narrativa e garantir que a maior parte das pessoas siga o famoso “padrão Globo”.

“Mas até nessa besteira?” Sim, principalmente nisso. Porque é assim, adentrando na linguagem popular (e poucas coisas são mais populares no Brasil do que o futebol), que uma empresa midiática se mostra relevante. Esses dias, inclusive, ouvi alguns comentaristas da ESPN tratando dessa questão da pronúncia do nome do técnico em um programa. Mas não duvido de que talvez até mesmo eles comecem a adotar o “novo jeito” daqui a pouco.

Stuart Hall escreveu, em Cultura e Representação, que a mídia não reflete simplesmente a realidade, mas age sempre construindo narrativas que se estabelecem no contexto das relações de poder. Assim, a linguagem é muitas vezes utilizada para reforçar estereótipos. Nesse sentido, não seria um estereótipo, por exemplo, aceitar por definição que as pessoas no Brasil não vão conseguir pronunciar corretamente o nome do técnico estrangeiro? E que, por esse motivo, é preciso adaptá-lo mesmo quando esse nome já é utilizado na mídia há muito tempo sem isso nunca ter sido um problema? Entendo que sim, e é aí que está o problema.

Como disse Foucault, em A Ordem do Discurso, controlar a linguagem e as normas do discurso é uma forma de controle social, porque esse processo é sempre, e necessariamente, uma forma de enquadrar os temas e os significados do que é dito e por quem é dito. Nada que acontece por aí é por acaso.

Então, quando você se pegar falando Ancelotti na comemoração do hexa ou na reclamação de mais uma derrota na próxima Copa, talvez você se lembre disso. Ou talvez não. Afinal, quem liga pra algo tão desimportante como o jeito de falar o nome dos outros? Como ainda dizem nos corredores das universidades: “isso é coisa de filósofo”.


Carlo Ancelotti. Foto por rafaelribeirorio, CBF.