Por que a filosofia foge da dança?

A estética, como disciplina filosófica, é recente. No entanto, desde Platão existem vestígios da reflexão sobre a dança a partir de obras filosóficas. Mas se é verdade que o próprio Platão escreveu sobre a dança em alguns de seus diálogos, o mesmo não vale para a maioria dos pensadores que vieram depois. Por quê?

O filósofo contemporâneo Michel Bernard, em Parler, penser la danse, afirma o seguinte:

Se há poucos filósofos que escreveram sobre a dança, é porque talvez tenham sentido confusamente que ela evanescia, evanescia demais, os filósofos não gostam daquilo que escapa, aquilo que escapa às pinças do conceito. Os filósofos que o tentaram são os aventureiros (…) (BERNARD, 2004, p.111-113)

Levando a reflexão para outro campo e pensando na busca por temas de interesse, podemos observar a pouca valorização da relação entre Filosofia e Dança. Pesquisando o Google Trends, por exemplo, percebemos que nos últimos 16 anos as buscas por filosofia e dança sempre foram menores em volume do que as buscas por filosofia e arte ou filosofia e música, e isso certamente tem mais a ver com a filosofia do que com qualquer outra coisa.

Existem muitas definições de filosofia (tantas quantas são os filósofos?), mas é inegável o fato de que o pensamento filosófico se insere quase sempre em uma busca de diálogo com aquilo que pode ser conceituado, ou o trabalho mesmo de construção dos conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Por isso, faz sentido a colocação de Bernard; assim como parece razoável que sejam justamente os filósofos contemporâneos que tenham se dedicado a discutir a dança de forma direta ou indireta (por meio da reflexão sobre o corpo). A contemporaneidade representa, por si só, essa marca da diluição dos conceitos, das certezas, da presença de uma confiança absoluta na razão. E não é esse um caminho aberto para a pesquisa sobre aquilo que exige mais do que a mera capacidade de organização lógica?

No entanto, nem tudo é tão simples. Muitos filósofos contemporâneos que tocam no tema da Filosofia da Arte insistem no esquecimento da dança. Deleuze e Guattari, por exemplo, dedicam um capítulo inteiro de O que é a filosofia? para discutir a arte. Eles escrevem sobre artes visuais, literatura, música… e também sobre corpo e carne, mas a partir de exemplos que eles tiram da escultura ou das artes plásticas.

No século XX, temos o exemplo de Susanne Langer (1980) como uma autora que se dedicou a explorar a dança em sua reflexão estética1. No entanto, seu livro nem sempre é lembrado e nem está em destaque diante de outros escritores que se dedicaram à Filosofia da Arte em algum aspecto e esqueceram (ou quiseram esquecer) a dança, como Heidegger, Adorno, Umberto Eco, Arthur Danto etc. E se voltarmos um pouco no tempo a situação é ainda mais complicada.

Kant, Hegel e Schopenhauer não se posicionam efetivamente em relação à dança. Na hierarquia das artes de Hegel e Schopenhauer, por exemplo, a dança não é claramente mencionada, sem falar no fato de que eles apresentam algumas escolhas bem questionáveis2. Por outro lado, quando a dança é lembrada é em associação com outras artes. Kant (1995), por exemplo, afirma que a dança é a junção da música com o gesto, não tendo ela mesma lugar em um posicionamento da classificação das artes, pois não é, em sua visão, uma arte autônoma. É bem verdade que a ideia de classificação das artes ficou para trás, mas como esses são os autores que fundamentaram o posicionamento estético da filosofia, essa forma de desconsiderar a dança é extremamente relevante, tendo um impacto direto na produção acadêmica sobre o tema.

No início do texto, afirmei que já existia menções à dança na antiguidade; mas quando Platão escreveu sobre essa arte em seus diálogos, especialmente em As leis, ela aparecia como uma condição de associação com a música para a construção do coro dionisíaco. Na perspectiva platônica, inclusive, existe um posicionamento moral diante da arte em geral e da dança em particular. Platão afirmava que os deuses nos legaram a capacidade do ritmo (algo de que, segundo ele, os outros animais são privados), daí a importância de utilizarmos esse dom nos cultos, e em especial de forma educativa3. E de nenhuma outra forma.

Nietzsche, no século XIX, certamente é uma exceção. Mas sua escrita poética e metafórica coloca a dança em um espaço de pouco diálogo com a filosofia hermenêutica. E talvez isso não seja tão ruim. Talvez a dança não precise entrar no campo do conceito, nem mesmo em sua produção acadêmica. No entanto, isso não explica porque a filosofia não se aproxima da dança, procurando esse diálogo conceitual. Será apenas o medo de entrar em um espaço em que o movimento é mais forte do que tudo?

A grande virada na arte do século XX foram os movimentos de vanguarda e a ruptura que esses movimentos trouxeram em relação à normatização da cultura. É no momento em que a arte supera as condições de regra para o bom fazer artístico que os trabalhos de Mary Wigman, Rudolf Laban, Martha Graham, Merce Cunningham, Pina Bausch, Trisha Brown, dentre outros, foi possível. A filosofia ainda foge da dança porque a dança (e não só ela) deixou de se subordinar à necessidade de se adequar a uma formatação do fazer artístico. Mas é preciso (porque é um benefício para todos os lados) mostrar que esse caminho pode ser trilhado em conjunto. E se não do mesmo jeito que a filosofia sempre faz, certamente será possível fazer de um outro modo; um que só a dança e a filosofia, juntas, podem criar.

Maga Radlowska, Contato-improvisação

Referências

BERNARD, Michel. Parler, penser la danse. Rue Descartes, Paris, n. 4, 2004/2.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GIL, José. Movimento total. O corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’água, 2001.

HEGEL. Cursos de Estética I. A idéia do belo artístico. 2o ed, São Paulo: Edusp, 2001.

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980.

PLATÃO. As leis. São Paulo: Edipro, 2010.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

Esse texto foi escrito para uma atividade chamada Jornadas do Corpo, organizada por professores e estudantes do curso de Licenciatura em Dança do IFB. A conversa ocorreu no dia 02 de Junho de 2020.

  1. Isso acontece em dois capítulos do livro Sentimento e Forma, publicado originalmente em 1953. 

  2. Hegel considera em sua hierarquia (uma ideia ultrapassada) as seguintes artes: arquitetura, escultura, pintura, música e poesia; sendo a poesia a mais elevada, por ser mais racional, e a arquitetura o seu contraposto. Já Schopenhauer inclui até mesmo a jardinagem dentro de sua hierarquia, mas esquece da dança. 

  3. Importante dizer que Platão defendia a existência de uma cisão ontológica entre a efemeridade do mundo sensível e a verdade presente no mundo inteligível. Também é razoável considerar que a proposta educativa de Platão se voltava para uma possibilidade de formação do cidadão tendo em vista a cidade justa, ideal; mas nesse modelo, elaborado em A República, a única arte mencionada na formação dos cidadãos é a música, sendo excluídas a dança, a poesia, a escultura etc. 

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo

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