O que é ter uma carreira?

Diferente de outras crianças, eu nunca quis ser alguma coisa. Não sei se isso tinha relação com o tipo de vida que eu levava, com as circunstâncias da minha família… não sei. Mas o fato é que eu era uma criança sem ambição. Brincava, jogava futebol, lia revistinhas em quadrinhos, desenhava e só. Eu não queria ser nada.

Um dia, já com treze anos, um amigo da escola perguntou se eu gostava de rock. Não gostava. Na verdade, eu não escutava música — até porque esse não era um hábito na minha casa — , mas eu achei mais simples dizer pra ele que não gostava de rock, mesmo sem saber de verdade se eu gostava ou não. Mas, mesmo com aquela resposta, ele disse que se eu quisesse ouvir algumas coisas que ele tinha era só eu comprar uma fita cassete que ele gravava pra mim. Bem, curioso eu sempre fui. Então, comprei uma fita BASF de 45 minutos e levei pra escola no dia seguinte.

Dias depois ele me voltou com a fita dizendo que tinha gravado algumas músicas de dois discos diferentes: um lado da fita era Loco Live, dos Ramones, e o outro era o The Wall, do Pink Floyd. Foi uma combinação estranha, mas na minha cabeça funcionou perfeitamente. Por muitos dias a partir dali eu escutava música todos os dias antes de ir para a escola. Acordava às 05h00 e, enquanto me arrumava, eu ouvia músicas como I Wanna Be Sedated e Comfortably Numb. Agora eu já sabia o que eu queria ser: músico.

Aprendi a tocar contrabaixo, entrei pra uma banda e acreditei que tudo podia dar certo. O problema, no entanto, é que eu nunca me esforcei o suficiente, nunca me dediquei o suficiente pra fazer com que aquilo que eu queria desse certo. E vivendo onde eu vivia, com as condições que eu tinha, eu precisava de muita dedicação pra que qualquer coisa funcionasse. Como você imagina, a vida de músico não deu certo.

Acabei entrando pra Universidade porque era importante e me tornei professor porque precisava trabalhar. Passei em concurso, fiz Especialização, Mestrado, Doutorado e hoje, meio que sem saber o porquê, parei pra olhar pra mim mesmo e entendi que eu tenho uma carreira. Quando alguém me pergunta o que eu faço, eu posso explicar qual é a minha profissão e como eu trabalho; posso dizer que dou aulas, coordeno grupo de pesquisa, oriento estudantes etc. Posso explicar as várias etapas da vida acadêmica que cumpri e detalhar como consigo fazer bem o meu trabalho. Mas a verdade — a verdade pura e simples — é que eu nunca quis fazer o que eu faço; nunca me imaginei sendo o que eu sou.

Isso não significa, de forma alguma, que eu desvalorize o meu trabalho ou não me dedique às minhas atividades. Não sei explicar pra você como funciona isso na minha cabeça, mas o que eu sinto é que tenho vocação para a docência e para a pesquisa, mesmo sem nunca ter observado em mim nenhum traço de aptidão para essas coisas. As minhas aptidões de infância (o desenho, por exemplo) se perderam pelo caminho; o meu interesse de adolescência (a literatura) sempre foi só uma paixão; a vontade do início da idade adulta (a música) foi só um caminho que deu em nada. Mas, de algum jeito torto, eu quero ainda ser tudo isso (ilustrador, escritor, músico — artista). E é por isso, e não porque eu realmente trabalhe com música, que até hoje eu escrevo em todo canto que sou músico. Eu quero ser um artista, me sinto um artista, apesar de nunca ter sido… Mas o fantasma que me esmaga com tudo é a definição que o mundo jogou sobre mim: foi a minha profissão que me escolheu e não eu a ela.

Respondendo à pergunta do título: ter uma carreira é se acomodar com tudo.