Como suportar a liberdade?

Se existe um valor que é quase unanimidade, pelo menos no nível do discurso, é a liberdade. Mas será que aceitamos realmente as consequências da liberdade ou será que esse é só mais um caso do tipo de coisa que defendemos a todo custo desde que não seja perto da gente?

Tem um tipo de liberdade que todo mundo defende e luta para garantir: a própria. Em relação a esta não existe dúvida. Mas com a liberdade dos outros, a liberdade de cada um se expressar, por exemplo, já é um pouco diferente.

Hoje teve greve de ônibus aqui em Brasília. Já saí de casa irritado, imaginando o metrô lotado e a provável necessidade de ainda ter que pagar algum preço injusto em uma van pirata. Diante desse cenário posso dizer que eu não estava muito predisposto a respeitar a liberdade alheia. E aí o que acontece? Eu entrei no metrô, superlotado como esperado, e um cara resolveu exercer a sua liberdade de expressão dizendo: “vou aproveitar a viagem pra dar um testemunho pra todos vocês!”

Nessa hora eu, que não podia me mover pra longe dali, vi como única solução sacar o fone de ouvido e colocar alguma música pra esconder a liberdade alheia - e foi o que eu fiz. O cara parecia educado, perguntou se podia falar (os únicos que responderam disseram “não”, mas ele decidiu falar assim mesmo, provavelmente entendendo que o silêncio da maioria equivalia a consentimento) e não estava gritando, apenas falava sobre sua fé, algo aceitável pra todo mundo que defende a liberdade de expressão. Mas como é difícil aceitar o aceitável!

Eu mesmo preferi ficar com o fone de ouvido, tentando ignorar o evangelizador, mas só o que consegui foi ter um mashup de Gimme Shelter e pregação religiosa. E como a música não era o suficiente para encobrir a voz do cara, algumas coisas conseguiram ultrapassar a barreira do fone de ouvido; coisas que eram, na minha opinião, uma interpretação espalhafatosa do cristianismo: “foi Deus quem colocou vocês aqui nesse metrô comigo”; “Quando Jesus veio a primeira vez foi pela barriga de Maria Madalena (?!?!), mas na próxima ele vai nascer direto do céu”; “ O velho testamento tá ultrapassado. Na minha igreja a gente não lê mais ele não”; “Eu gosto de festa junina, mas não no dia dos santos” etc.

Enfim, eu sei que não devia zombar da ignorância dos outros, até mesmo porque não quero que fiquem zombando da minha. Mas - e esse é o ponto onde quero chegar - como ser respeitoso quando as pessoas ultrapassam os limites do silêncio e da solidão públicas?

É muito fácil dizer que devemos defender o direito de todos e, sim, eu acredito nisso!, mas reconheço que não é algo simples de praticar. Sartre estava certo: estamos condenados à liberdade. E como em toda condenação o que mais queremos é encontrar a saída, a redenção.

Que paradoxo somos nós…

Instalação de Shirin Abedinirad

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo

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